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Elementos tradicionais do jardim português

FRANCISCO CALDEIRA CABRAL
Retirado da Conferência proferida no ISA em 1941, durante a II Exposição Nacional de Floricultura, em Fundamentos da AP, pag 87.

Não faltam os jardins em Portugal, das mais variadas épocas, e já à volta de 1600, Filipe II deles e das suas flores se maravilhara, escrevendo nesse sentido a suas filhas, embora certamente não desconhecesse os que a Espanha possuía.

Para o caso que aqui mais nos interessa do jardim junto à casa de habitação, poderemos encontrar elementos formais, em tudo dignos de serem seguidos, nos nossos pátios e jardins dos séculos XVII e XVIII, que vivendo na sua simplicidade da harmonia das proporções merecem cuidadoso estudo que pode vir a ser base segura da renovação do jardim português. Outros elementos valiosos encontramos nas nossas quintas e campos, como sucede com as múltiplas formas de latadas e bardos. E a propósito da latada, não resisto a observar que não é necessário chamar-lhe “pérgula” para que tenha direitos de cidade e que há antes toda a vantagem em a examinar com interesse para compreender melhor a sua função e distinguir melhor a sua função e distinguir claramente a construção de efeito essencialmente arquitectónico, em que a planta é simples motivo acidental, da latada construída para ser em primeiro lugar suporte da planta trepadora. Igual valor tem os nossos bancos, alegretes, azulejos, tanques e tantos outros motivos, não perdendo de vista, no entanto, que eles não constituem por si o essencial que está sempre o modo do seu emprego e a concepção geral do plano. É esta que nos devemos sempre esforçar por compreender, estudando as razões e funções das coisas. Como exemplo citarei um motivo de todos tão conhecido e abundante na região de Lisboa – o tanque coberto pela latada. Não quero afirmar que fôssemos os únicos a inventar tal coisa e que ela não se possa encontrar noutros países de condições climáticas semelhantes, sem que por isso esteja no entanto provado que deles os copiássemos.
Seja porém como for a verdade é que se pensarmos um pouco vemos que esta associação – tanque, latada e banco – é perfeita, debaixo do ponto de vista funcional de que tanto se orgulha o nosso tempo. A sombra da latada impede a evaporação da água no verão e conserva uma humidade e frescura de que a planta e o homem beneficiam. Nunca encontraremos tal motivo no Norte da Europa – É que nós gozamos a sombra e eles o sol!

Os Muros

A ideia do jardim recatado foi sempre e continuará a ser bem portuguesa, ajustando-se inteiramente à concepção familiar e de que não nos devemos envergonhar mesmo quando se não ajuste ao ultimo figurino, lembrando-nos até que na terra desse figurino nem tudo felizmente a ele se ajusta. Em todos os nossos jardins e quintas o muro desempenhou sempre um grande papel e peço que o não condenemos sem primeiro lembrar que já há 3000 anos, no Egipto, havia muros, e que os houve sempre depois na Grécia, na Itália e em Espanha ao passo que durante esse mesmo tempo já na Inglaterra e na Alemanha havia as hoje tão famosas sebes, que portanto não são, como muita gente supõe, sinal de progresso e alta civilização, mas simplesmente um uso diferente, por certo muito fundamentado para ter subsistido tantos anos! Não será talvez mais do que diz o ditado: “ cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”.

Permita-se-me, no entanto, que faça ainda algumas considerações sobre este assunto que muito tem despertado a minha curiosidade. Quero em primeiro lugar chamar a atenção para o facto de, justamente em Lisboa, a terra dos muros, existirem dentro das suas quintas maravilhosas sebes de buxo e murta que fariam inveja a qualquer inglês, o que não impede que sejam sempre vedadas pelos tais muros hoje tão maltratados. Cuida-se, em geral, que a explicação está numa simples medida de segurança, mas sem querer pronunciar-me sobre os instintos de rapina dos nossos antepassados, lembrarei que era velho costume estarem sempre abertos os portões das ditas quintas e que os encontramos rodeando os campos de cultura, com aberturas sem portas o que mostra claramente não ser esse o intuito. SE perguntarmos a um homem do campo desta região para que servem os muros, dirá que para proteger do vento a novidade, o que nos mostra uma importante utilidade do muro visto o vento ser factor limite importante das culturas, mas nada nos diz sobre as razões de preferência deste abrigo a outros. O caso é, como vêem, complicado e prometo que logo que souber mais sobre o assunto não deixarei de fazer a revelação sensacional. Enquanto não sabemos mais, ponderemos que não é de admitir que os portugueses, que fundaram a Nação, que fizeram as descobertas colonizaram e trabalharam durante oito séculos, fossem tão atrasados e de olhos tão fechados ao que por esse mundo se passava, que só por velha teimosia rotineira fizessem os tais muros. Antes pois de os arrasarmos, vejamos bem todas as vantagens e todo o proveito que deles podemos tirar, livrando-os, se possível com o nosso engenho, dos defeitos que lhes encontrarmos.

A Plantação

A respeito da plantação direi, simplesmente, que o uso das plantas vivazes vem reatar igualmente as velhas tradições dos nossos jardins, em que havia sempre grande numero de arbustos e plantas vivazes. As plantas de flor, quase sempre mais exigentes em termos de água, deverão manter-se num justo equilíbrio com os arbustos e outras plantas mais resistentes á secura, questão fundamental em Portugal onde a água custa dinheiro e não pouco. No Verão, com a intensa luminosidade do nosso céu, devemos procurar sobretudo as sombras frescas, guardando a abundância de flores para o Outono, Inverno e Primavera. É a própria natureza que nos dá essa indicação, pois, como é sabido, na região de Lisboa são os meses de Julho, Agosto a princípios de Setembro as mais pobres em flores do campo.

Para as bordaduras vivazes, temos condições óptimas para as manter todo o ano, porque o problema do Inverno não existe em quase todo o País, e muitas espécies que lá fora perdem a folha, aqui conservam-na até à rebentação, desde que no verão recebam um pouco de água.

Quanto às plantas propriamente portuguesas, melhor do que eu o saberia dizer, nos falou o Prof. Rui Palhinha, não só com toda a sua autoridade como também com aquele dom natural de ensinar e convencer que todos lhe conhecemos. Faço, pois, minhas as suas palavras e apenas que é enorme a minha satisfação ao ver partilhar uma ideia a que também muito quero, verificando que ela se vai espalhando e que contribuirá para, em mais um ponto, mesmo que a muitos pareça mínimo, ir afirmar a consciência do nosso próprio valor, ajudando assim a renovação nacional. Essa noção dos nossos valores tinha descido tanto que não só importámos do estrangeiro grande numero de plantas, que são espontâneas entre nós, como desconhecemos algumas outras que lá fora se cultivam. Não quero esconder-vos o meu espanto ao ler num livro alemão que o Narcissus cyclamineus, planta que vira mencionada à muito em revistas inglesas, americanas e alemãs pela sua graciosidade e beleza, se encontrava apenas em Portugal. Consultando a nossa Flora verifiquei que ela cresce espontânea somente em dois rios do Minho, e que, sendo completamente desconhecida dos nossos jardins, é cultivada nos viveiristas estrangeiros com bolbos que necessariamente foram de cá.

A primeira exposição nacional de floricultura que amanhã se encerra, tendo alcançado um êxito que excedeu todas as expectativas, e que como já se fez notar será certamente a primeira de uma longa série, constitui um brilhante passo e marca uma vontade decidida de acabar com o estado de coisas a que me referi.

Foi dentro desse espírito que procurei dar a minha fraca colaboração, falando-vos dos jardins que são, afinal, o complemento natural das flores. Neste ano das comemorações centenárias, ano de meditação do que fomos no passado e ainda mais do que havemos de ser no futuro, ficamos devendo ao Município de Lisboa duas importantes iniciativas que se completam: A Exposição Nacional de Floricultura e a obra de renovação dos nossos jardins públicos, há tanto tempo desejada por todos, mas que só agora foi possível empreender.

Desejo e tenho a certeza que essas duas iniciativas hão-de vingar a Bem da Nação.

Tenho dito