Centenário Francisco Caldeira Cabral » A formação de arquitecto paisagista: A Escolha de Berlim.

A formação de arquitecto paisagista: A Escolha de Berlim.

TERESA ANDERSEN
Adaptado de “Três décadas de Arquitectura Paisagista em Portugal: 1940-1970”, Teresa Andresen, Lisboa 2003.

Francisco Caldeira Cabral recebeu o diploma de arquitecto paisagista, em 1940, da Universidade de Friedrich-Wilhelm onde entre 1936 e 1939 frequentou a Faculdade de Agronomia. Berlim era uma cidade sua conhecida pois em 1925, com 17 anos de idade, logo após ter terminado o liceu em Lisboa, matriculou-se na Secção de Química da Technische Hochschule. No semestre de Verão de 1926 passou para a Secção de Electrotecnia. Porém, em 1930 interrompeu os estudos na Alemanha e regressou a Portugal matriculando-se no Instituto Superior de Agronomia (ISA) onde em 1936 terminou o curso de engenheiro agrónomo.
Quando Caldeira Cabral viveu, pela primeira, em Berlim, entre 1925 e 1930, no ambiente de inspiração democrática da República de Weimar, os alemães recuperavam da guerra e das determinações do Tratado de Versalhes. Eram tempos difíceis embora se começasse a esboçar alguma estabilidade. A crise económica de 1929 veio perturbar este caminho, provocando uma enorme instabilidade política com uma visibilidade cada vez maior dos partidos extremistas, em que se destacavam os comunistas e os seguidores de Hitler que tomou o poder em 1933, marcando o início do Terceiro Reich. A segunda fase de estudos de Caldeira Cabral em Berlim passa-se num ambiente bem diferente, em plena ascensão da popularidade de Hitler. Berlim era indiscutivelmente um importante centro intelectual da Europa e destino de estudantes de todas as nacionalidades. Com Caldeira Cabral encontram-se vários outros bolseiros do Instituto para a Alta Cultura que se distinguiram em Portugal nos mais diversos campos do conhecimento, da antropologia à música.
Em princípios de 1935, Caldeira Cabral, então estudante do 4.º ano de Agronomia, tinha sido convidado a entregar na Câmara Municipal de Lisboa (CML) uma proposta de trabalho tendo em vista a substituição de Vieira da Silva, chefe da Repartição de Jardins e Cemitérios, que tinha atingido o limite de idade. A Comissão Administrativa da Câmara Municipal tinha decidido que o futuro chefe desta repartição fosse um técnico especializado em assuntos de jardinagem, embora se reconhecesse não haver ninguém tecnicamente habilitado. Assim foi sugerido o nome de Caldeira Cabral para começar a dar apoio na Câmara, mesmo antes de concluir o curso. Era já então claro que havia necessidade de ser realizada uma especialização no estrangeiro e estudava-se a hipótese de a Câmara a financiar, porém, as regras da administração tal não permitiam (1).
Num documento que se presume ser de 1941 e dirigido ao ministro da Educação tendo em vista a criação de um curso de Arquitectura Paisagista, fica-se a saber as motivações de Caldeira Cabral para estudar Arquitectura Paisagista: “Comecei a estudar o assunto e verifiquei haver duas coisas distintas e que então se confundiam na designação genérica de jardinagem: a jardinagem propriamente dita, ramo especial da horticultura, e a arquitectura paisagista que se ocupa da concepção e projecto do jardim. Se a primeira era entre nós rudimentar, a segunda não existia de todo. Porque logo me pareceu que o melhoramento da parte material do jardim seria inútil enquanto não estivesse bem clara a ideia ordenadora, o plano do mesmo, propus e foi aceite que estudasse a arquitectura paisagista.”(2)
Estimulado pelo desafio da Câmara Municipal de Lisboa e com o apoio do Professor André Navarro (3), Caldeira Cabral estabelece os primeiros contactos internacionais para se informar sobre cursos de Arquitectura Paisagista: “Tratei imediatamente de pedir para Inglaterra e Alemanha informações acerca dos cursos de jardinagem e arquitectura de jardins existentes nesses países. Não obtive resposta de Inglaterra e de comum acordo com o Sr. Vereador e depois de ouvida a opinião do Sr. Arquitecto Raul Lino dirigi a minha atenção para a Alemanha visto os programas […] satisfazerem ao fim em vista e eu já conhecer bem o meio por lá ter vivido durante cinco anos e frequentado a Technische Hochschule de Berlim-Charlottenburgo.”(4)
Pela leitura do documento que Caldeira Cabral preparou para entregar na Câmara com a sua proposta de trabalho, ficamos a saber o seu conhecimento sobre o estado da arte da prática da Arquitectura Paisagista e a sua opinião sobre a situação dos jardins em Portugal:

“Exige este cargo para o seu bom desempenho variadas habilitações para que seja possível encarar o problema da jardinagem citadina debaixo dos seus múltiplos aspectos. Não se pode tratar somente de resolver determinados problemas de técnica cultural nem mesmo de estética circunscrita no âmbito do jardim, torna-se necessário integrá-lo num plano geral de urbanização tanto sob o ponto de vista estético como da sua função social.
Existiu entre nós uma escola de jardinagem que como é notório se perdeu de todo. Deu-se depois a costumada invasão das formas estranhas mal compreendidas por inadaptáveis ao nosso modo de ser psicológico e à nossa ecologia. Os jardins da cidade de Lisboa são a prova palpável desta minha afirmação, e foi certamente por isso que a actual vereação sentiu a necessidade de modificar estes serviços elevando-os àquele nível que tem procurado imprimir a todas as suas actividades. Anda de resto o nosso público tão divorciado de jardins e flores que merece o maior louvor a iniciativa camarária, única possibilidade de um renovamento de há muito desejado.
Necessita-se para dirigir estes serviços, aqui mais do que em qualquer outro país, uma preparação agronómica que só os engenheiros agrónomos possuem, porquanto se não trata de ir estudar técnicas culturais e uma flora já bem determinada mas de criar de novo o jardim moderno português, adaptado ao nosso país, às nossas condições económicas e até um pouco ao nosso gosto. A par destes conhecimentos exige-se evidentemente a necessária sensibilidade artística convenientemente educada. Estava por isso indicado que se fizesse uma especialização num país em que esse ensino esteja organizado.”(5)

Quanto ao estado da arte do ensino da Arquitectura Paisagista em meados da década de 30, a perspectiva de Caldeira Cabral era a seguinte (6):

“Os países onde o ensino da arquitectura paisagista (de jardins)(7) se encontra oficialmente organizado são os Estados Unidos da América do Norte, o Japão, a Inglaterra, a Alemanha e a Bélgica. Ponho de parte o Japão e também os Estados Unidos porque creio mais proveitoso estudar na Europa onde as condições económicas e sociais são mais próximas das nossas. Os próprios americanos têm vindo estudar, através das suas academias de jardinagem na Itália e na Espanha, os modelos clássicos.
Fixei pois a minha atenção na Inglaterra e na Alemanha. Os dois cursos têm a mesma duração de três anos e sensivelmente os mesmos programas. Devo porém dizer que, quanto se pode avaliar pela enumeração e títulos das cadeiras, me parece preferível o curso alemão. Acresce ainda que tendo frequentado durante 10 semestres a Technische Hochschule de Berlim-Charlottenburgo conheço perfeitamente o meio académico alemão, o que evita perdas de tempo e alem disso me poderá eventualmente permitir abreviar o tempo do curso em vista dos 10 semestres mencionados e do meu curso de engenheiro Agrónomo. Tenciono ainda empregar um semestre em Inglaterra, depois de obtido o diploma de arquitecto paisagista (de jardins) (Diplom Gärtner) a practicar junto de um estabelecimento oficial ou de qualquer das grandes casas inglesas como Suttons & Sons de Reading ou James Carter & Co. de Londres. Durante as férias grandes tenciono ainda visitar a Itália e França o que julgo de grande interesse.”(8)

Caldeira Cabral escreveu então para as universidades em Reading e Berlim. Em Reading, o curso era recente e não era considerado grau universitário. Em Berlim, o ensino da Arquitectura Paisagista tinha sido iniciado em 1929, o meio era seu conhecido, a língua alemã era-lhe totalmente familiar e assim acabou por se decidir pela Alemanha. O ingresso na Câmara não se confirmou e enquanto concluía a licenciatura de Engenharia Agronómica ia aprofundando os seus conhecimentos de jardinagem sob orientação de André Navarro. O Jardim Botânico da Ajuda teve então um papel fundamental para Caldeira Cabral assim como mais tarde durante toda a sua vida de ensino da Arquitectura Paisagista. Num documento de Caldeira Cabral existente nos arquivos do ISA, datado de 1941, depois de em 1940 André Navarro e o Conselho Escolar lhe terem confiado a sua direcção, podemos ler: “Em Julho de 1935 o Prof. André Navarro teve de ausentar-se de Portugal e encarregou-me da direcção do jardim durante a sua ausência, preparando-me para em Dezembro de 1936 ir estudar Arquitectura Paisagista, como bolseiro do Instituto para a Alta Cultura.” Esta sua primeira tarefa durou os meses de Verão de 1935 e deu origem ao seu relatório de tirocínio.
Foi então angariando mais apoios para o seu regresso a Berlim. Um dos mais importantes encontrou no arquitecto Raul Lino, velho amigo de família, e que também tinha estudado na Alemanha nos finais do século XIX, em Hanôver, e praticado no atelier de Karl Albrecht Haupt (9). Outros docentes no ISA começaram também a manifestar o seu interesse por esta nova profissão e a apoiá-lo. Entre eles merecem destaque Mário de Azevedo Gomes, responsável pelo ensino da Silvicultura (10), e Ruy Mayer (11). Mário de Azevedo Gomes, num documento manuscrito datado de 28 de Junho de 1936, escreve:

“Esta arte difícil de construir, conservar e valorizar, consoante os locais e os objectivos, jardins e parques destinados a logradouro público, já não é, do nosso tempo, comportável com a incultura artística de quem dirija as diversas iniciativas, mas tão-pouco é satisfeito pelo recurso ao amadorismo, ainda mesmo quando este seja guiado – coisa assaz rara entre nós – por apurado bom gosto natural. O arquitecto paisagista que já teve sua história e período áureo e depois como que foi banido, por dispensável, volta agora a representar o papel que lhe compete. Com a sua técnica especializada tende, com justiça, a apossar-se das soluções do problema que consiste em fornecer ao povo de cada paiz o máximo de oportunidades para que ele encontre nas várias manchas urbanas e suburbanas de jardins e parques, com o benefício da saúde, outros tantos quadros, mais ou menos circunscritos, de belleza, educadores amáveis do espirito público.
De Portugal pode dizer-se que aquele banimento é geral e constante; as iniciativas de interesse publico na matéria em questão decorrem na ausência de qualquer fiscalização técnica competente, se definirmos como tal a que parte da gente habilitada, havendo feito estudos especiais e que tenha provado possuir quer o saber, quer o senso artístico necessários. Parece na verdade que essa obra sem relevo, fragmentaria, desconexa, quais sempre misérrima que se nos depara, e que é sobretudo patente na capital do paiz, reclama a pronta intervenção entre nós, de quem sinta, de facto, o problema e o conheça em toda a sua complexidade.
E parece também que os orientadores capazes, havemos de começar por formá-los no contacto dos meios avançados em tal cultura, mandando fora quem estuda e aprenda e logo adapte, com perfeito conhecimento local, às condições nacionais os ensinamentos úteis do estrangeiro. …
O plano de estudos que tenho presente da ‘Landwirtschaftliche Hochschule’ de Berlim, até nele posso ajuizar da questão, parece satisfazer os requisitos da especialização complementar a que de algum modo aludi, figurada a hipothese de um diplomado português de agronomia e silvicultura. Penso que tal plano parece restringir a intervenção profissional à arquitectura do jardim; mas julgo que é para ser tomado […] em sentido mais lato e seguramente a mesma intervenção estender-se-ha, com competência igual, a partir d’este curso, ao parque, modalidade em que, insisto, mais ainda tem que demorar-se, entre nós, a atenção dos futuros técnicos, os arquitectos paisagistas portugueses.”(12)

E assim, uma vez terminada a licenciatura em Agronomia, Caldeira Cabral partiu em Dezembro desse ano para Berlim acompanhado pela sua mulher para se formar em Arquitectura Paisagista, desta vez no Institut fur Gartengestaltung da Universidade de Friedrich-Wilhelm.
A atribuição da bolsa de estudo fora do país tinha sido anunciada em Agosto de 1936, pela Direcção do Instituto para a Alta Cultura(13) e, no mês seguinte, ïnformava sobre a sua decisão final de ir para a Alemanha.

Adaptado de “Três décadas de Arquitectura Paisagista em Portugal: 1940-1970”, Teresa Andresen, Lisboa 2003.

Notas:

1 Documento dactilografado e manuscrito por Caldeira Cabral, de Março de 1935.
2 Carta de Caldeira Cabral dirigida ao ministro da Educação Nacional, Lisboa, sem data.
3 André Francisco Navarro, nascido em 1904, concluiu o seu curso de engenheiro agrónomo em 1927 e nesse mesmo ano foi contratado como assistente do ISA. Em 1933, por morte do Professor Rasteiro, André Navarro tomou conta da cadeira de Arboricultura, Horticultura e Jardinagem, tendo então igualmente tomado conta do Jardim Botânico da Ajuda. Em 1936 é nomeado director do ISA, cargo que mantém até 1962 quando, entre outras funções, desenvolve actividade intensa com vista à criação do Ensino Superior no Ultramar. Em Outubro de 1940 foi nomeado subsecretário de Estado da Agricultura e foi ainda deputado da Assembleia Nacional.
4 Documento dactilografado e manuscrito por Caldeira Cabral, de Março de 1935.
5 Documento dactilografado de Caldeira Cabral, sem data.
6 Dois documentos de 1935 tratam este assunto. O primeiro é escrito na perspectiva de celebrar um contrato com a Câmara Municipal de Lisboa, o que nunca se concretizou, e o segundo é escrito tendo em vista a obtenção por Caldeira Cabral de uma bolsa de estudo do Governo através do Instituto para a Alta Cultura. A transcrição provém deste último.
7 Ao longo deste texto dactilografado, a designação arquitectura paisagista aparece riscada e a palavra paisagista substituída por de jardins. Nesta transcrição mantêm-se as duas designações, a dactilografada e a manuscrita.
8 Texto dactilografado, assinado por Caldeira Cabral, sem data, embora se depreenda da sua leitura tratar-se do ano de 1935, a propósito do seu pedido de uma bolsa para estudar no estrangeiro.
9 K. Albrecht Haupt (1852-1932), arquitecto e filósofo alemão que fez o levantamento da arte do Renascimento em Portugal.
10 Mário de Azevedo Gomes (1885-19??) completou o curso de engenheiro agrónomo em 1907 e entrou como professor do Instituto Superior de Agronomia em 1911. Dotado de assinaláveis qualidades pedagógicas marcando gerações sucessivas de alunos, foi activista político democrático liberal e, durante um curto período de tempo, Ministro da Agricultura, sendo um firme opositor do regime de Salazar.
11 Ruy Ferro Mayer, professor de Hidráulica Agrícola no Instituto Superior de Agronomia foi membro vogal da Comissão Executiva da Junta Nacional de Educação, vice reitor da Universidade Técnica de Lisboa assim como exerceu diversos cargos executivos no Instituto de Alta Cultura e outras instituições, tendo também traduzido as Geórgicas de Virgílio. Porém a marca mais significativa que deixou foi seguramente nas sucessivas gerações de alunos do Instituto Superior de Agronomia pelas suas ainda lembradas qualidades pedagógicas. A revista AGROS dedicou-lhe um número especial no ano da sua jubilação em 1958.
12 Documento manuscrito de Mário de Azevedo Gomes, datado de 28 de Junho de 1936.
13 Carta do IAC para Caldeira Cabral, datada de 28 de Abril de 1936.