Centenário Francisco Caldeira Cabral » Arq. Ribeiro Telles

Arq. Ribeiro Telles

in Prefácio da 1ª edição dos Fundamentos da Arq. Paisagista

Ao ser-me solicitado escrever o Prefácio do 1º volume da obra escrita do Prof. Francisco Caldeira Cabral, intitulada “Fundamentos da Arquitectura Paisagista”, fiquei por um lado assustado perante a responsabilidade de tal encargo e, por outro lado, desejoso de reler temas e reflectir sobre princípios, conceitos e ideias a que muito deve a minha formação de homem e de arquitecto paisagista.

O pensamento do autor, as soluções que propõe e os conhecimentos científicos de que se serve são de uma flagrante actualidade, apesar de já ter decorrido quase meio século após a apresentação dos primeiros textos que constituem este volume.

Na obra realça a visão humanista da natureza, alicerçada em profundas e reflectidas bases científicas e no respeito pela tradição.

A definição de Arquitectura paisagista que então propõe: “ Arquitectura Paisagista é a Arte de ordenar o espaço exterior em relação ao Homem” adquire nos dias de hoje enorme importância plenamente justificada pelas consequências derivadas dos erros então apontados.

Referimo-nos ao incremento das monoculturas, especialmente das florestais; à aplicação da agro-química, desprezando-se o emprego da matéria orgânica na fertilização dos campos; à destruição da zonagem e da compartimentação da paisagem; ao alastramento indiscriminado da urbanização; à construção; à construção insólita e desintegrada do espaço físico de infra-estruturas várias; à canalização de ribeiras e impermeabilização de margens de linhas de água e de áreas de máxima infiltração – tudo isto tem conduzido à erosão do solo em extensas áreas, a alterações prejudiciais ao clima e microclimas, à simplificação e desertificação das paisagens, à pobreza e despovoamento das zonas menos (mais?) desfavorecidas do país.

Toda esta panorâmica da actualidade do nosso território foi prevista pelo autor e sugeridos caminhos e soluções que, na maior parte dos casos, serviram apenas para formação dos seus alunos! Mas o Prof. Caldeira Cabral apontou à muito um caminho que é necessário seguir.

Na realidade a humanização das paisagens exige, para além de razões económicas e objectivos sociais, que se realize numa perspectiva humanista, cultural e moral, para o qual o arquitecto paisagista deverá estar especialmente vocacionado e preparado.

A arquitectura paisagista é essencialmente uma arte e quem a pratica é um artista, pelo que na formação deste deve ser desenvolvido o sentido da proporção e do equilíbrio que conduzem, através da criatividade, ao belo. Bela arte, fundamentalmente social, porque se destina a ser vivida intrinsecamente pelas pessoas a quem se dirige e a ser, sobretudo, concretizada pelo uso. A arquitectura paisagista deve ter da paisagem que cria ou transforma uma concepção no espaço e no tempo, porque estando sujeita À dinâmica da vida, nunca está terminada.

O papel abrangente da arquitectura paisagista é sempre posto em realce pelo autor, que salienta que o seu exercício se deve alicerçar numa vasta base de conhecimentos científicos e técnicos. Tal facto, reconhecido como fundamental, tarduziu-se na preocupação, sempre presente nas actividades do Prof. Caldeira Cabral, em conhecer até ao mais ínfimo pormenor, as causas de tudo e a relação entre as coisas e os sistemas.

A compreensão da paisagem é indispensável para nela se poder actuar, e nessa compreensão há que entender o relacionamento entre os diferentes elementos que a compõem e o seu comportamento.

O funcionamento global da paisagem, em cada momento, traduz-se sempre pela procura dum equilíbrio dinâmico e duma estabilidade temporal.

A presença activa de cada um dos seus elementos tenderá sempre a contribuir para esse equilíbrio e estabilidade, mesmo que corresponda a uma menor riqueza biológica.

A acção do homem poderá então determinar um caminho mais consentâneo com os seus interesses no sentido da diversidade biológica e dum maior potencial genético e de vida.

O autor foi uma das primeiras pessoas que integrou estes princípios, que são os da ecologia na organização do espaço biofísico, seguindo as pisadas de Lenné que o fez no âmbito da economia.

A arquitectura paisagista é na realidade a acção criativa, consequência da ecologia da paisagem. São palavras suas: “Que as modificações introduzidas no equilíbrio da natureza não venham a produzir efeitos desastrosos, antes conduzam a uma harmonia melhor que a anterior” e ainda “É evidente que em toda a natureza há sempre uma ordem segundo a qual os diversos elementos actuam uns com os outros, dando-nos em cada momento um determinado aspecto com uma determinada tendência evolutiva. Ora a verdade é que embora o homem seja também um dos elementos que existem neste mundo, ele é o único capaz de conscientemente modificar todos os outros elementos para os seus fins próprios”

Nos dias em que, em Portugal, uma visão exclusivamente economicista e materialista da sociedade, e uma técnica ao seu serviço dominam a intervenção humana do território, como necessidade imprescindível do “progresso”, o Prof. Caldeira Cabral defendia e exaltava que a modelação da paisagem pelo homem se deveria fazer, atendendo à realidade social, à herança cultural recebida e pensando no futuro.

São estes aspectos que devem nortear o ordenamento do território como disciplina de grande actualidade, apesar de incompreendida por muitos sectores profissionais.

O ordenamento do território deverá ter como princípios e conceitos eficazes de intervenção os da arquitectura paisagista, porque esta é uma arte que coopera com a natureza, posta à disposição do Homem para a realização dos seus fins.

A arquitectura paisagista encontra as suas mais remotas origens no oficio de jardineiro, cujos objectivos são, num espaço limitado, manter o grau de fertilidade, intensificar e dar continuidade ao aproveitamento e melhorar as plantas utilizadas. Bem depressa esse espaço limitado se transformou num lugar idílico de estar e simbólico da fertilidade.

A intervenção do arquitecto paisagista nas paisagens actuais deverá aliar o utilitário ao lúdico e criar o belo, como o jardim dos frades-jardineiros no alvor da civilização europeia, ao dividirem o seu mundo palpável exterior na horta e pomar e nos jardins de plantas medicinais e de flores.

A realização da paisagem humanizada não deve deixar de considerar a vontade latente das populações de se recriar o Éden, também presente no subconsciente das camadas mais desenvolvidas, necessidade cada vez mais imposta pela sistemática destruição de paisagens equilibradas e belas a que hoje assistimos, pela degradação, a uma escala nunca antes vista, dos recursos naturais de que a humanidade depende, pela alienação que representa o consumismo exorbitante das sociedades desenvolvidas.

A construção da paisagem tem de ter em consideração o desenrolar do processo civilizacional iniciado a partir da organização dos espaços com o fim de satisfazer as necessidades primárias da sociedade; criaram-se gradualmente laços de fraternidade humana e solidariedade ecológica e desenvolveram-se culturas, que ainda hoje subsistem nas sociedades mais primitivas ou mesmo nas rurais mais afastadas das vias egoísta do chamado “progresso”.

É a partir do pressuposto de que o homem para utilizar a natureza tem de a respeitar e desenvolver as formas mais apropriadas, que o Prof. Caldeira Cabral define o conceito de paisagem: “conjunto de condições de existência da biocenose de que o homem faz parte”.

A realização da paisagem global, onde o espaço rural, por essência mais próximo da natureza viva, se há-de intercalar com o espaço urbano, por essência também mais artificial, sendo que ambos deverão integrar harmonicamente as infra-estruturas indispensáveis ao desenvolvimento e bem estar das populações, deverá assentar nos princípios tão simples que presidem à criação do jardineiro naturalista.

O facto de o jardim em Portugal se caracterizar e desenvolver, tendo como objectivos materiais não só os da produção como também os espirituais, do recreio e uso lúdico e contemplativo, levou o Prof. Caldeira Cabral a chamar a atenção para a necessidade de se estudarem as características especificas das diferentes formas dos nossos jardins: quintas de recreio e conventuais, tapadas e cercas, santuários, pequenos pátios e alegretes, cemitérios. Estudo a que, felizmente, alguns dos seus alunos e sucessores deram apreciável incremento.

Ao estabelecer os princípios da zonagem sobe o ponto de vista paisagístico, o autor estabelece os conceitos básicos que devem presidir ao ordenamento do território ou seja, realizar a síntese dos pontos de vista edáfico, climático e geobotânico com o ponto de vista humano, tendo em mente obter o rendimento óptimo em cada momento, consentâneo com a permanência desse rendimento através dos tempos.

O ordenamento do território não poderá deixar de seguir estes conceitos que incluem tanto o espaço de produção como a escala e o funcionamento da cidade como cabeça da paisagem de que faz parte, e centro nevrálgico da “polis”. A zonagem tem tanto cabimento no espaço rural como no espaço urbano e é uma consequência da evolução do espaço histórico.

A erosão que foi apontada pelo autor como um dos mais graves problemas do território nacional, continua a alastrar por todo o país sem se atender às consequências do facto. A erosão é provocada pelo homem ao destruir ou simplificar o coberto vegetal na ânsia de obter lucro o mais rapidamente possível, retirando do solo a riqueza natural acumulada por gerações sucessivas de agricultores.

A destruição da manta viva da crosta terrestre continua a verificar-se por todo o lado em nome do progresso económico e da modernização da agricultura, não se fazendo caso das judiciosas considerações feitas então pelo Prof. Caldeira Cabral.

É não só a politica florestal, fomentando a plantação estreme de espécies de rápido crescimento em grandes manchas, a agro-química e a rega de extensas áreas arenosas da charneca miocénica e pliocénica, como também o abandono de terras pela agricultura, em face de pressões urbanísticas muitas vezes hipotéticas, a abertura de estradas e auto-estradas, provocando extensas feridas na paisagem, sem possibilidade de rápido revestimento vegetal, a implantação cega de edifícios.

São visíveis e dolorosos os taludes descarnados, cortados à faca, das novas vias de circulação, as margens impermeabilizadas e até leito betonizados das linhas de água a destruição de muitas ribeiras, canalizadas, e a sistemática destruição pelas lavouras estivais da linhas de drenagem naturais.

Na nossa paisagem pensa-se que as feridas abertas à erosão são sinais de progresso, quando são sintoma de incompetência e de desapego por aquilo que a cultura do povo tem de mais caro: as paisagens tradicionais consolidadas. Do alerta levantado pelo Prof. Caldeira Cabral há mais de quarenta anos, poucos responsáveis fizeram caso no campo da aplicação prática, apesar de muitos dos seus conceitos terem servido de base á legislação existente. No entanto a gravidade do problema subsiste.

Ao tratar tão esclarecidamente da estrada na paisagem, vai para meio século, não adivinhava o autor a maneira como hoje são construídas as vias de circulação mais recentemente abertas, uma vez que a integração na paisagem envolvente, a modelação do terreno atingido, a cobertura vegetal estão ausentes daquela construção. Por maior que seja a necessidade de circular mais velozmente, por mais seguro que pretenda ser o seu traçado – o que na maior parte dos casos não se verifica – por mais sofisticado que seja o seu funcionamento, a estrada nunca deverá divorciar-se da paisagem que serve e atravessa.

A estrada, por um lado, descobre a paisagem a quem por ela circula, e por outro faz parte da paisagem que percorre, valorizando-a ou desvalorizando-a nas suas múltiplas facetas biológica, morfológica, estética e ambiental.

As faixas laterais das grandes vias de circulação poderão constituir corredores ecológicos revestidos de vegetação paraclimácica que contribuirá para a diversificação, o equilíbrio biológico, a estabilidade e a beleza da paisagem.

Este aspecto justificava que as faixas laterais das estradas principais e auto-estradas se incluíssem na REN (Reserva Ecológica Nacional), como se verificava na primeira forma legislativa deste diploma. Tal não compreenderam os actuais legisladores que não consideraram estas faixas na REN.
A estrada secundária e municipal deverá, por sua vez, integrar-se nas características da paisagem rural que atravessa, através da reposição dos elementos fundamentais desta paisagem: muros, latadas, bardos e fiadas de árvores, como salientava o autor.

Os princípios e conceitos expostos e as soluções proposta pelo Prof. Caldeira Cabral revestem-se de uma oportunidade flagrante, pelo que a publicação do 1º volume dos “Fundamentos da Arquitectura Paisagista”, que se fica a dever ao Instituto da Conservação da Natureza, é, para além de uma merecida homenagem, um contributo para os problemas da paisagem em geral e do ordenamento do território em particular sejam entendidos como fundamentais na realização do futuro.

A acção do arquitecto paisagista é essencial na transformação e criação da paisagem e portanto, no ordenamento do território, seguindo o Prof. Caldeira Cabral: “A beleza deve ser o reflexo espontâneo da boa adequação da obra ao fim proposto, como qualidade intrínseca, e não, como geralmente se supõe, em resultado de uma série de operações posteriores – e portanto extrínsecas – chamadas embelezamento”

Gonçalo Ribeiro Telles
Prof. Cat. Jubilado e Arqº Paisagista