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Arq. Fernando Pessoa

In Fundamentos da Arq. Paisagista, Arq.º Fernando Pessoa: (pags 13 a 16)

Elegia a Francisco Caldeira Cabral ou o elogio da Arquitectura Paisagista

O Professor Francisco Caldeira Cabral, Engenheiro Agrónomo pelo Instituto Superior de Agronomia (1936), Arquitecto Paisagista pela Universidade de Berlim (1939), Professor Catedrático Jubilado do ISA, faleceu com 84 anos, em 10 de Novembro de 1992.

Com ele se encerrou um período da vida portuguesa, e também internacional, em que o técnico e o cientista era também humanista e homem de cultura, num contexto universalista que hoje se perdeu na excessiva especialização das profissões; já poucos restam desta plêiade de grandes figuras, em que entra também, por exemplo, Orlando ribeiro, que tanto dignificaram o nosso país, mas a quem este nunca concedeu o tratamento especial que lhes seria devido, como concede no entanto, tantas vezes, a quem singra e se revela pelo oportunismo e pela falsa sabedoria.

Este escrito, se é uma elegia, evocação de saudade e de homenagem a Francisco Caldeira Cabral, é também um esboço de elogio que é devido à Arquitectura Paisagista pelo que esta profissão contribuiu, discreta mas decisivamente, para a mudança de mentalidades e de formas de agir nas intervenções sobre o território, considerado espaço e paisagem.

Tive o privilégio de trabalhar com o Prof. Caldeira Cabral ainda em Setembro de 92, quando a doença já o afligia, para a recolha de material que possibilitasse o início da publicação da sua obra.

Recordá-lo é, como para todos os que o conheceram e de alguma forma conviveram com ele, recordar a eloquência e a graça, a sabedoria e o bom senso, a profunda cultura e o rigor do cientista, a intuição admirável e o prefeito domínio das técnicas, que transpareciam das suas aulas, nas suas conferências ou nas simples conversas de corredor – ele que era um conversador por excelência.

Quando no final da década de 30 chegou a Lisboa com o curso de Arquitectura Paisagista, tirado em Berlim, sobe a orientação do Mestre Prof. Wipking e se propôs iniciar, a titulo experimental, em 1942, no ISA, o Curso Livre de Arquitectura Paisagista, abriu uma nova fase no meio universitário e técnico português – ao trazer a inovação e a polémica das intervenções de engenharia biofísica num domínio exclusivo da engenharia civil, do ordenamento do território e do planeamento do espaço exterior e a sua integração com o tecido construído num domínio até aí também exclusivo da engenharia e da arquitectura.

O Curso Livre de Arquitectura Paisagista passou a ter depois carácter definitivo, e foi uma extraordinária escola de formação técnica, cultural e humanista, pois dizia o Professor que ali não era só a informação que contava, era sobretudo a formação.

Em autentico regime de academia, as matérias eram ensinadas sem preocupação de programa rígido, embora as normas oficiais obrigassem a que existisse um programa; entrava-se para uma aula e ficava-se ali a ouvir o Prof. Caldeira Cabral a falar, interligando as matérias (que haveriam de ser digeridas nas disciplinas do programa), fluentemente, sem fadiga nem dele nem de quem o escutava. As saídas ao campo e as visitas de estudo eram momentos de extraordinária convivência que para quem as viveu não mais as esquecerá.

Ao longo das ultimas décadas o Prof. Caldeira Cabral estudou os mais variados problemas da paisagem portuguesa, escalpelizando as causas das disfunções provocadas por intervenções insensatas, lançando avisos sobre as consequências que estas intervenções poderiam vir a ter, e com tal argumentação lógica seriamente fundamentada, que se tornava difícil, senão mesmo impossível contradizê-lo.

Intervenções notáveis são tantas vezes as que realizou, mas poderá referir-se muito resumidamente as que teve no Estádio Nacional em Lisboa, no Plano Director de Lisboa, na transformação da Avenida da Liberdade em Lisboa, na estruturação dos serviços de espaços verdes de Lisboa, nos primeiros grandes projectos portugueses de rega por aspersão como o das vinhas da Casa Cadaval, nas plantações de açúcar de Incomáti, Moçambique, e nas plantações de café de Angola; em inúmeros projectos e planos de urbanismo em todo o País bem como projectos de integração paisagista de escolas, infra-estruturas, instalações desportivas, industriais, etc.

De todas as suas intervenções retirava sempre consequências para o ensino, e os alunos eram confrontados, ao longo do curso com exemplos concretos da actividade profissional.

As soluções mais correctas para muitos dos problemas causados à natureza e à paisagem assentam em geral no aproveitamento criterioso dos próprios fenómenos e elementos naturais, soluções que são por regra mais económicas e simples do que as soluções tecnicistas e artificiais, mas que suscitam ainda hoje uma forte dose de desdém aos paladinos das soluções “pesadas” – porque as outras dão menos nas vistas, porque ao darem realce às potencialidades naturais não deixam realçar quer o orgulho quer os lucros de projectistas, de vendedores de equipamentos, de produtos de cimento e de estruturas…

Se falar destas soluções da Arquitectura Paisagista e da engenharia biofísica ainda hoje provoca sorrisos de comiseração ou oposição, conforme os sectores, na altura do arranque do Curso Livre e nos anos seguintes era quase uma provocação.

Foi com a Arquitectura Paisagista que em Portugal se passou a falar de planeamento integrado, foi com ela que se constituíram as primeiras equipas interdisciplinares para encontrar soluções globais nos domínios do urbanismo, da conservação da natureza, da integração das infra-estruturas e das zonas industriais.

Do Curso Livre de Arquitectura Paisagista saíram as primeiras fornadas de técnicos que se vieram a impor pela sua postura, pela eficácia das suas intervenções, pela frontalidade na denúncia das situações aberrantes na gestão do espaço português.

Manuel Azevedo Coutinho, Edgar Fontes, Gonçalo Ribeiro Telles, Ilídio de Araújo, António Campello, Viana Barreto, Álvaro Dentinho, Manuel Sousa da Câmara são os primeiros nomes que surgem a liderar soluções inovadoras para os problemas resultantes da evolução da sociedade urbana e das transformações do mundo rural.

O Prof. Caldeira Cabral foi sempre uma referência imprescindível, o modelo, a autoridade que todos escutavam.

Nunca tendo sido político, demonstrando sempre grande independência nas suas opiniões e nas suas intervenções, tanto no regime anterior ao 25 de Abril de 74 como depois deste, o Poder nunca lhe propôs honrarias nem benesses.

Numa célebre conferência que proferiu na década de 60, na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa altura em que Salazar lançara a famosa frase “Portugal não está à venda”, o Professor referindo-se ao descalabro que começara a verificar-se com os loteamentos do Algarve vendidos a estrangeiros, para turismo, sem qualquer planeamento, deixou o seu polémico aviso: “Talvez Portugal não esteja à venda por grosso, mas está a retalho!”.

Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Hannover e de Évora, dirigiu cursos em universidades de todo o mundo, como as de Hannover, Berkeley, Atenas, Newcastle, Michigan, Madrid, Pennsylvannia, Évora, Zaragoza, Tóquio; foi vice-presidente e presidente da IFLA (International Federation of Landscape Architescture); acabou por ser vitima em Portugal de um saneamento selvagem no ISA, conduzido por um oportunista, como tantos que infelizmente saíram do 25 de Abril.

O Professor sentiu a injustiça que lhe estava a ser feita, mas também percebeu que o ocorrido em nada afectava a sua figura, o seu prestígio e a sua vida impecável. E quem conduziu o saneamento, hoje praticamente ignorado pelos colegas de profissão, acarreta às costas até ao fim dos seus dias a vergonha de ter tomado tais atitudes.

A actividade do Prof. Caldeira Cabral continuou depois disso com a mesma intensidade e brilho, desenvolvendo trabalhos de projecto, de ensino na Universidade de Évora, de conferências, congressos, concursos e de júri de concursos.

Os arquitectos paisagistas portugueses, o ensino, a cultura portuguesa ficaram muito mais pobres com o seu desaparecimento.

Na altura em que se comemoram os 50 anos de profissão em Portugal, faltou a presença do eminente Professor para coroar essas comemorações; a sua acção ao longo de meio-século foi fundamental para possibilitar a crescente implantação dos arquitectos paisagistas, e a sua obra ficará como marco inesquecível da arte de construir e preservar a paisagem em Portugal.

Fernando Pessoa, Arquitecto Paisagista.