Centenário Francisco Caldeira Cabral » Em defesa da Paisagem Continental

Em defesa da Paisagem Continental

Fundamentos da AP, pags 129 a 134.
Jardins de Portugal (em Panorama, n.º 15 e 16, Julho de 1943)

Características tradicionais do jardim português

Certamente que os jardins são de todas as obras de arte as mais frágeis e não é por isso de admirar que muitos dos nossos tenham sido destruídos ou tão profundamente modificados, que seja hoje impossível fazer ideia do seu aspecto primitivo. Mas resta-nos ainda abundante material que é urgente estudar sistematicamente. Para esse fim todos nos devemos interessar, desde os grandes jardins dos paços reais e de alguns conventos, até aos mais pequenos e modestos das nossas cidades – e mesmo os jardins rurais de algumas das nossas províncias, como o Minho.

Só depois de coligidos todos os elementos necessários – levantamentos, fotografias, dados históricos que permitam fixar a data da sua construção e as pessoas que os delinearam, bem como a relação das plantas que nele se encontram e o modo como são empregadas – poderemos concluir com segurança da originalidade das suas formas e traçar o quadro das suas características nacionais. Será então igualmente possível obstar, com critério seguro, a que se continue a sua destruição sistemática, classificado aqueles que por qualquer título o mereçam, de monumentos nacionais – o que hoje ainda não é possível.

Ao estudar os nossos jardins não nos devemos preocupar apenas em encontrar elementos originais, diferentes de tudo o que possa haver noutros países, mas também notar cuidadosamente todas as características comuns que permanentemente ou numa época nos ligam a outros povos. Sem esse trabalho corremos facilmente o risco de fazer uma caricatura em vez de estabelecer o quadro exacto que procuramos.

Este estudo não será tão-pouco um mero inventário de glórias passadas, mas deverá procurar uma projecção futura, fonte nossa de inspiração, em que claramente se reconheçam as linhas permanentes e, por isso mesmo, sempre actuais, dos jardins de Portugal. É cedo para decidir definitivamente se temos ou não uma escola própria de jardinagem e para nitidamente destrinçar o que foi criação própria do que recebemos de fora, mas creio que se pode desde já afirmar que os nossos jardins de todas as épocas, incluindo a actual, têm um ambiente próprio que os torna inconfundíveis. Nem era de esperar que um povo, com uma personalidade nacional tão marcada como o nosso, que se formou e viveu sempre em condições tão especiais em relação ao resto da Europa, tivesse na jardinagem um papel meramente receptivo.

As características dos nossos jardins, tanto quanto é possível desde já entrever, resultam naturalmente de um conjunto de circunstâncias: foi a nossa organização social e a sua evolução, foram as descobertas pondo-nos em contacto com novos mundos e novas plantas, foi o nosso clima, debaixo de muitos pontos de vista privilegiado, foi o acidentado do nosso território que juntamente com a nossa maneira de ser particular determinaram o tipo dos nossos jardins.

O carácter de intimidade dos jardins medievais manteve-se entre nós até há bem pouco tempo, com altas sebes e muros apenas interrompidos por algumas janelas abertas sobre a vista ou sobre a estrada. E também na planta se manifesta a persistência do espírito medieval, pois quase nunca atingimos a unidade de composição entre o jardim e a casa, com desenvolvimentos axiais bem marcados, que se começou a desenhar no renascimento italiano e culminou no barroco francês. Os diversos compartimentos dos nossos jardins dispõem-se ao sabor das vistas, adaptando-se admiravelmente ao terreno mas sem aquela rigidez e clareza geométrica que encontrou expressão perfeita no jardim francês do século XVIII. São afinal obra do mesmo espírito e da mesma gente que construiu o Paço de Sintra.

E porque temos estado a encarar aspectos medievais dos nossos jardins, é interessante dizer que os alegretes, elemento que só entre nós se encontra, devem, a meu ver, considerar-se como filhos directos do banco de relva medieval que nos aparece em tantos quadro e iluminuras da época. Apenas separámos, com o andar do tempo, as duas funções e, por isso, os nossos alegretes aparecem com frequência interrompidos por bancos.

Associado aos alegretes, aproveitamos os acidentes do terreno para construir os jardins em terraços, sistema que não parece ser devido a influencias estranhas pois que desde sempre assim armámos as nossas terras de cultura. Aliás esses terraços dispõem-se de maneira muito diversa da italiana do renascimento, parecendo antes o seu arranjo mais próximo dos tempos da Roma clássica.

Se em todos os aspectos citados até aqui o jardim português se mantêm atrasado em relação aos dos outros povos da Europa, há pelo menos um, em que me parece ter-se-lhe adiantado de bem dois séculos. Refiro-me à concepção naturalista de muitas obras nossas do século XVI, como a Penha Verde e os Capuchos. Nunca mais, e em parte nenhuma se conseguiu um equilíbrio tão perfeito e uma unidade tão completa entre a obra do homem e a da natureza, não como desde o século passado rebaixando o homem ao plano simplesmente natural, mas sim elevando ambos, Natureza e Homem, ao plano divino da criação dentro do conceito católico e franciscano. Não pretendíamos imitar artificiosamente a natureza, mas apenas integrar com raro instinto, na nossa obra, as belezas naturais que encontrámos, fossem elas uma fraga, um velho carvalho ou um vasto panorama. É de notar a preocupação que tivemos de edificar as nossas casas e situar os seus jardins em locais com boa vista, - o que não é para admirar num povo que sempre viveu nas alturas e que quase ignora o que seja a planície.

Foi talvez por este amor da natureza, que o jardim era entre nós a continuação da casa ao ar livre e estava em imediata ligação com ela, o que o desenvolvimento da casa em planta e não em altura facilitava. Quase sempre pelo menos um pequeno terraço se encontrava ao nível do andar de habitação, e as árvores dos nossos jardins emolduram e aconchegam as casas portuguesas.

Como era natural, num país de luz intensa e de sol abundante, sempre apreciámos a frescura da sombra e criámos contrastes fortes de sombra e de luz. As latadas junto da casa ou cobrindo os caminhos dos jardins, os caramachões, os recantos e terraços debaixo de árvores bem copadas eram os lugares predilectos para estar e passear. Pela mesma razão dominam nos jardins portugueses as plantas de folhas persistentes que no Verão repousam pelo tom escuro da sua folhagem e no inverno conservam o jardim sempre vestido. Devemos contudo distinguir neste ponto o Norte e o Sul do país, o que é perfeitamente natural e corresponde à diferença da paisagem e do clima. À medida que caminhamos para Norte, aumenta o número de plantas de folha caduca e diminui o predomínio dos arbustos nos jardins. Mas em todo o País, as árvores e arbustos constituem o elemento dominante e dentre estes damos especial apreço às plantas aromáticas. Com elas fizemos as sebes de buxo, de murta e de loureiro que davam sombra, defendiam do vento e, ao mesmo tempo, perfumavam o jardim.

Também a água aparece em todos os nossos jardins e, se não igualámos os italianos na fantasia dos seus jogos de águas, nunca deixámos de aproveitar com o maior cuidado esse elemento. Ficaram como soluções originais os grandes tanques do Palácio Fronteira e da Quinta da Bacalhôa, não só pela sua disposição como pela sua ornamentação. Em todas as quintas se aproveitavam os tanques de rega e as nascentes para agradáveis sítios de estar, construindo-se bancos e latadas junto aos tanques decorados com azulejos e com bicas de cantaria ou carrancas, mais ou menos trabalhadas e aproveitando-se as minas para casas de fresco.

Procurámos nestas breves linhas apontar algumas das características do jardim português. Mais do que todos os pormenores é, no entanto, o seu ambiente especial que lhe dá carácter, ambiente de luz e de sombra, de contraste entre a frescura do jardim e o sol abrasador da paisagem, atmosfera de quietação e de paz no meio da vegetação exuberante e variada, onde a par das nossas plantas bravas, como o buxo e a murta, o alecrim e a alfazema, se encontram representantes de todos os continentes, como os aloés e as piteiras da América, a cameleira da Ásia e as palmeiras africanas. Portugal, ponto de partida das descobertas e cabeça do império, pôde assim reunir nos seus jardins plantas de todo o mundo que ele descobriu e em cuja obra de civilização continua a ter largas responsabilidades.

Aspectos essenciais do projecto de um jardim actual

Falámos brevemente dos antigos jardins de Portugal e mostrámos o muito que neles tínhamos de aprender. Hoje trataremos de fazer algumas considerações gerais e apontar aspectos essenciais do projecto de um jardim.

Todos os que conhecem a extensa zona de areias situada a sul do Tejo, a tão falada mancha do Pliocénico, viram, por certo, ao meio da charneca coberta de mato, com os seus sobreiros e pinheiros mansos característicos, pequenas hortas rodeadas por uma sebe primitiva de caniço e mato entrelaçados.

Foi assim que começaram os jardins, e logo nasceram com características que os haviam de marcar para sempre.

Espaço fechado, destinado a culturas especiais e mimosas, o jardim teve de defender-se primeiro dos animais bravios, como ainda hoje na charneca, e depois, quando a população foi aumentando, também do homem. O jardim que representa a forma mais intensa de apropriação da terra, desde que o homem construiu a sua casa e se fixou, passou a constituir com ela um todo único, o seu prolongamento exterior, e assim se foram desenvolvendo – no aspecto formal, a ideia de recinto, de espaço delimitado – e no aspecto espiritual, a sua intimidade.

Temos pois de ter sempre presente que o jardim é um espaço a três dimensões, facto que frequentemente se esquece porque em geral não é possível desenhar alçados – no jardim o que interessa são os cortes, o aspecto interior – e portanto, vemos apenas diante de nós uma planta. Mas isso é só uma razão a mais para insistirmos na necessidade de considerar a terceira dimensão, para termos bem presentes os dois elementos – a superfície e a altura - . Repare-se que se no exemplo apresentado a sebe forma o elemento de contraste que delimita a superfície, na mata a ideia de jardim aparece ligada à clareira, e então são as árvores circundantes que nos dão o elemento de altura.

É evidente que o primeiro cuidado ao fazermos um projecto de um jardim deve ser a boa proporção entre a superfície livre e as alturas que a limitam. Estas dependem de muitas sujeições funcionais – como o abrigo dos ventos, defesa contra a vista dos vizinhos, ensombramento resultante, pontos de vista que queremos manter ou encobrir – e a melhor solução do projecto será sempre um compromisso entre as várias exigências consideradas segundo a sua importância relativa, notando que é essa também a de maior beleza.

Convém desde o inicio estabelecer clara distinção entre as diversas zonas do jardim com diversas funções, como por exemplo – zona de trânsito, zona de estar, zona de passear – e estuda-las de forma a que não haja interferência entre umas e outras.

De uma maneira geral, pode dizer-se que tudo o que retalha a superfície diminui o seu tamanho aparente, porque destrói a sua unidade. É por isso errado colocar as casas a meio do terreno e abrir depois um caminho que corte este em duas partes iguais e se dirija para o meio da casa. Mesmo quando esta já esteja construída e não seja fácil modificá-la, há sempre maneira de remediar ou, pelo menos, atenuar o inconveniente.

Outra regra geral, é a necessidade de haver em cada parte da composição um elemento dominante, a que outros se subordinem. Assim por exemplo, é frequente ver em muitos jardins uma proporção sensivelmente igual entre a área de ruas e de canteiros que nos deixa indecisos sobre qual deles é o mais importante. Nos claustros, os jardins tinham um desenho de buxo com estreitas ruas que, embora necessárias para tratar deles, faziam parte do desenho que formava um todo, como um tapete verde, visto que a zona de trânsito era propriamente debaixo das arcadas, ao passo que nos pátios de nossas casas há apenas alegretes junto ás paredes, deixando todo o terreiro livre para o movimento dos carros e pessoas.

Há muitas vezes tendência para exagerar a largura das ruas do jardim, quando a verdade é que o seu funcionamento depende muito mais da lógica com que foram taçadas. Devemo-nos lembrar sempre da lei do menor esforço e de que a maior parte dos nossos actos são subconscientes. Por isso, as ruas não deverão ter todas a mesma largura, marcando assim claramente os percursos principais e secundários, e quando haja necessidade de fazer confluir duas ruas com uma terceira, é melhor evitar o cruzamento que deixa a pessoa indecisa, afastando os pontos de encontro e assinalando-os de maneira diferente pela plantação ou pela largura das ruas laterais. Também na plantação há a mesma necessidade de marcar claramente um carácter, não semeando indistintamente flores, arbustos e árvores por toda a parte, mas sim formando grupos que, umas vezes pelo contraste, outras por gradação, sirvam um fim determinado. Não quer isto dizer que se não possam plantar árvores ou arbustos isolados, mas então definitivamente sós para dar um primeiro plano ou para marcar uma intenção especial.

É da maior importância a boa distribuição da luz e das sombras no jardim. Alguns, levados por exemplos de fora, em geral mal compreendidos e mal adaptados ao nosso clima, e pela ânsia de sol agora em moda, quase suprimem a sombra nos nossos jardins, esquecendo-se que estes têm de ser habitados durante todos os meses do ano, outro – talvez por espírito de contradição – fazem consistir o jardim numa pequena mata, onde nunca entraria um raio de sol – e também estes não têm razão. A verdade é que há dias para o sol e outros para a sombra e que mesmo quando se está á sombra é sempre agradável ver o sol. Entre nós, onde o sol de Verão escalda e fere a vista, há-de ser sempre apreciada a sombra e a frescura da água corrente, desde a matinha cerrada de cedros do Buçaco à meia luz dos choupos ou de uma latada.