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Uma Nova Concepção de Protecção da Natureza

PROF. FRANCISCO CALDEIRA CABRAL
Extracto de “Protecção da Natureza e Arquitectura Paisagista”, Conferência realizada na sociedade de Geografia de Lisboa, em 30 de Março de 1955. Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa – Abril- Junho, 1956, pp 151.

Uma Nova Concepção de Protecção da Natureza(*)

O domínio da Natureza pelo Homem:

Ninguém pode hoje duvidar que o homem, desde a noite dos tempos foi o maior agente de modificação da paisagem. A continuidade da sua acção e a sua universalidade modificaram extensas zonas da face da Terra, imprimindo-lhe os aspectos que hoje conhecemos e cujas transformações foram de tal forma lentas que a maior parte das gerações que nos antecederam se não deu conta das suas responsabilidades, senão em casos esporádicos e limitados.

Durante milénios o homem teve que defender-se o melhor que soube e que pôde de uma Natureza muitas vezes hostil. Mas o seu intuito não era de pura e simples destruição, mas sim de submissão desta aos seus interesses e desígnios. Essa natureza que sempre rodeou o homem e sempre lhe criou dificuldades, foi também desde sempre a Terra Mãe que o alimentou, onde ele foi buscar todos os elementos de que necessitava, os alimentos, os materiais de construção, os animais que conseguiu domesticar e, para além disso, a Beleza que o encantava, e que como já dizia Salomão “cantava as glórias do Senhor”.

A Ciência e o progresso técnico:

Procurou o homem desde sempre conhecer e compreender a Natureza e os seus fenómenos e não é este um dos seus menores encantos.

Mas só nos começos do Renascimento o homem começou a ter uma visão universal do mundo. Todas as velhas civilizações conheceram apenas aspectos limitados e circunscritos da Terra – só com as descobertas se logrou finalmente o conhecimento elementar da forma do Globo.

E daqui em diante a ciência progrediu a passos agigantados, a ponto de no século XIX ter podido surgir uma técnica que já não era como até aí meramente arte – fruto da intuição – mas aplicação lógica de conhecimentos científicos. Compreende-se perfeitamente o espanto da humanidade perante estas descobertas e realizações; sente-se, e todos nós ainda o vivemos nos romances de Júlio Verne. E por isso não é de admirar que muitos se tenham julgado “como deuses”, capazes de tudo conhecer e dominar, dispensados de vez de amar a natureza, para simplesmente a dominarem, e até, se preciso fosse, recriarem ao sabor dos seus desejos servidos pela sua ciência!

Todas as soluções antigas foram postas em dúvida e, porque na maior parte dos casos não se lhes podia dar uma explicação lógica e científica, foram consideradas falsas e inúteis, se não prejudiciais.

Em vão alguns choravam a perda da antiga beleza da paisagem ou do valor artístico do trabalho manual. A nova técnica impunha-se cada vez mais, dando ao homem uma noção de libertação, de possibilidades ilimitadas, que, se ainda não chegavam a todos, poderiam vir a chegar, porque já não era o condicionamento humano que marcava, mas sim as possibilidades da técnica, cujos limites pareciam não existir.

Os primeiros movimentos de Protecção da Natureza:

Mas a própria ciência que tinha dado origem à técnica começou a preocupar-se com as destruições realizadas e, sobretudo no campo das ciências naturais, mais directamente afectadas, surgiu um movimento de alarme e o pedido insistente de providências para a conservação de elementos preciosos para os seus estudos. Espécies vegetais e animais desapareciam em ritmo acelerado, vítimas umas de pura destruição, outras da exploração industrial e comercial desordenada. Exemplares de formações geológicas raras eram ameaçados de destruição inconsiderada pelo traçado de novas estradas ou caminhos de ferro, pela exploração mineira ou simplesmente pelo arroteamento de novas terras para cultura agrícola.

E assim, os espíritos sensíveis de artistas que lamentavam a perda da beleza e humanidade viram-se de novo aliados ao s homens de ciência, que temiam a perda do próprio objecto dos seus estudos. Não esqueçamos neste rápido bosquejo histórico que se está no momento político em que surgem os movimentos nacionalistas e regionalistas do século XIX e que ao mesmo tempo se iniciavam os movimentos de protecção aos monumentos históricos, ao folclore, etc. Para só citar um nome bem conhecido da literatura mundial, falarei de Ruskin, e entre nós do movimento iniciado por Garrett e que se estende até ao Conde de Sabugosa e Ramalho Ortigão, com a acção de restauro dos monumentos da Senhora D. Amélia, a Rainha que queria no Parque da Pena tudo entregue à natureza. O seu domínio era a Cruz Alta com o seu morro de carvalhal. Para não falar nos homens de ciência que de perto os acompanharam – desde Brotero a El-Rei D Carlos com os seus estudos e colecções oceanográficas e cinegéticas.

Foi deste ambiente que nasceram na Alemanha e em Inglaterra associações como o Bund für Natur- und Heimatschutz e a British Association for Preservation of Rural England, entre outras.

Todo este movimento no século XIX tinha no entanto um carácter de estrita protecção e, assim, predominantemente estático ou mesmo de reconstituição histórica. A este carácter se opunha o sentido essencialmente dinâmico da indústria e da técnica, onde a chamada lei do progresso impunha a renovação constante , umas vezes por necessidades reais de modificação, outras simplesmente para não parar a sua laboração ou lhe aumentar as possibilidades.

Não era fácil o entendimento neste campo, nem era de prever, dentro do condicionalismo político-económico de todo o fim do século XIX e princípios do século XX, que o movimento da Protecção da Natureza conseguisse vingar.

Uma nova concepção da Protecção da Natureza:

Disse-se atrás que uma das dificuldades da Protecção da Natureza estava, no século XIX, no seu sentido estático de conservação, a que se opunha o sentido dinâmico das forças destruidoras técnico-económicas. Ora a função do Arquitecto Paisagista era essencialmente diferente do papel do homem de ciência que estuda a Natureza, ou do artista que a pinta ou a contempla. A sua vida é de facto de intervenção activa na paisagem e foi assim que fomos levados a uma nova concepção, ou melhor, a um alargamento dos conceitos de Protecção da Natureza.

Não se trata já apenas de conservar, de tolher o passo aos empreendimentos alheios, mas sem menosprezo das necessidades igualmente imperiosas da vida nas suas múltiplas manifestações.

Mais ainda, na reconstituição de paisagens totalmente degradadas pela indústria já foi possível criar novas zonas de Protecção da Natureza.

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(*) Extracto de “Protecção da Natureza e Arquitectura Paisagista”, Conferência realizada na sociedade de Geografia de Lisboa, em 30 de Março de 1955. Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa – Abril- Junho, 1956, pp 151.